18.1.12

#direto do porto: casa do conto-arts & residence

[A fachada da Casa do Conto, à rua da Boavista, no centro do Porto (©FG+SG-Fernando Guerra e Sérgio Guerra)]

Não fosse uma das revistas com as quais colaboro regularmente no Brasil e, porventura, continuaria na mais santa ignorância em relação a uma novidade de truz na cidade no Porto.

E, palpita-me, não sou o único.

[A receção, com um sofá de couro do brasileiro Percival Lafer (©FG+SG-Fernando Guerra e Sérgio Guerra)]

Estou a falar da Casa do Conto, à rua da Boavista (a curta distância da Casa da Música), um projeto arrojado de arquitetura que combina, em doses iguais, hotelaria e artes.

[O hall, em betão cru, que funciona como um elemento central de ligação a todos os pisos (©FG+SG-Fernando Guerra e Sérgio Guerra)]

Mas, como em toda a boa história, o melhor é recuar no tempo e começar por era uma vez um prédio burguês do século XIX, declarado de interesse público, que foi preservado como um exemplo da arquitetura doméstica portuense, solene e vertical, com os seus tetos de gesso, escadaria central em madeira torneada, marmoreados, estuques ou salões de grande pé-direito. 

[As escadarias em betão e aço mas com aplicação manual de tiras de couro (©FG+SG-Fernando Guerra e Sérgio Guerra)]

No início, o atelier de engenharia e arquitetura Pedra Líquida, sedeado no Porto, foi chamado a fazer a reforma do imóvel, mas a família que deveria morar ali mudou de planos ainda a obra não estava concluída. Afeiçoada à casa, Alexandra Grande, mentora do projeto e membro-fundador do atelier, convenceu os seus sócios a comprar o edifício e a arcar com a sua conversão em algo que, até à data, não existia no Porto: um pequeno hotel ligado às artes e disposto a tornar-se um ponto de encontro na cidade. 

[A coroar o hall vertical, uma clarabóia (©FG+SG-Fernando Guerra e Sérgio Guerra)]

Os trabalhos decorreram de 2007 a 2009, mas ai, na reta final, um incêndio deitou tudo a perder em apenas 12 horas. Sobrou o esqueleto da casa e a alvenaria em granito. Muitos teriam desistido ali mesmo. Alexandra, não. Afinal, não é todos dias que um atelier se pode dar ao luxo de fazer exatamente aquilo que quer. Em julho de 2011, a Casa do Conto reabriu como Arts & Residence, pronta a continuar a sua história. 

[A clarabóia é um grande olho, aberto no betão, para deixar entrar a luz natural (©FG+SG-Fernando Guerra e Sérgio Guerra)]

Perdi a inauguração, mas estive ali há poucos dias e foi a própria Alexandra quem me guiou e apresentou o projeto. “Era uma casa muito ornamental que sintetizava a alma do Porto”, admite a engenheira, mas nunca passou pela sua cabeça “tentar refazer o que se perdera”. À exceção da fachada, reproduzida o mais fiel possível por se tratar de uma construção histórica, o atelier permitiu-se arriscar e a ruptura fica clara mal se entra na casa. 

[A sala de estar, comum a todos os hóspedes (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

[O teto da sala de estar, com pequenos textos gravados no betão (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

A volumetria foi respeitada — tendo sido apenas acrescentado, como já estava previsto inicialmente, um quinto andar —, traduzindo-se numa área total de 600 metros quadrados. No lugar da escadaria desaparecida, que era a pièce de resistance, um imenso hall, em betão cru, faz o acesso vertical, através de elevador e de escadas, a todos os pisos. Alexandra apelida esta intervenção de “arquitetura fóssil”, pois na textura do concreto são nítidas as marcas das antigas estruturas de sustentação. 

[A sala comum de refeições, no piso -1, virada para o jardim (©FG+SG-Fernando Guerra e Sérgio Guerra)]

Nos pisos 0 e -1 ficam a receção, as salas de refeições (detalhe: os tampos das mesas exibem azulejos que Alexandra salvou da casa original) e de estar, além de uma pequena biblioteca, na marquise colada ao salão, que dá acesso ao jardim nos fundos. Nas traseiras, a silhueta da casa surge depurada, revestida a chapa ondulada de zinco para não destoar dos prédios vizinhos. 

[O jardim nos fundos (©FG+SG-Fernando Guerra e Sérgio Guerra)]

A pontuar os diferentes ambientes, o mobiliário retro ou mais contemporâneo, assinado por ilustres como o português Siza Vieira (são dele os candeeiros) ou o brasileiro Percival Lafer (o sofá de couro mole domina a receção), é outra paixão assumida de Alexandra. 

[Varanda da Suite Residence NG (©FG+SG-Fernando Guerra e Sérgio Guerra)]

Antes de passar às suites, apenas seis, é impossível não reparar na clarabóia a coroar o hall e que mais não é do que um olho “à Le Corbusier”, aberto no betão, para deixar entrar a luz natural. Viradas para a rua ou para o jardim, as suites fazem a apologia do “menos é mais”: roupa de cama branca, candeeiros de Souto Moura e peças de design escolhidas a dedo. Consoante o caso, podem ter varandas ou até uma balaustrada (como a Suite Avenue PB, que a incorporou como um balcão com janelas de correr), mas todas possuem uma janela interior, para o hall, que convida os hóspedes a brincar de esconde-revela. 

[O interior da Suite Residence NG (©FG+SG-Fernando Guerra e Sérgio Guerra)]

No mesmo espírito lúdico, aberturas no teto rebaixado das casas de banho, embutidas nas cabeceiras juntamente com kitchenettes (disfarçadas por portas de correr em valchromat preto), permitem vislumbrar fragmentos do teto superior. Como um segundo céu. 

[As casas de banho possuem olhos no teto rebaixado... (©FG+SG-Fernando Guerra e Sérgio Guerra)]

[... que permitem vislumbrar o teto mais alto da suite (©FG+SG-Fernando Guerra e Sérgio Guerra)]

Os tetos são, aliás, um capítulo à parte. Em parceria com os criativos da R2 Design, pequenos textos de seis figuras ligadas à cidade e à sua arquitetura foram “cofrados” (técnica de engenharia, que consiste numa forma para moldagem e secagem do betão) e recortados, em baixo relevo, nos tetos em betão aparente.

[A Suite Avenue PB (©FG+SG-Fernando Guerra e Sérgio Guerra)]

O bem conseguido recurso estilístico valeu já dois prémios internacionais de design gráfico (o SEGD Design Awards e o Golden Award do European Design Awards, na categoria “Signs & Displays”).

[Casas de banho e kitchenettes... (©FG+SG-Fernando Guerra e Sérgio Guerra)]



Na primeira fase do projeto, em que a crueza do betão se sobrepunha a tudo o resto, houve quem temesse um desfecho demasiado frio. Quase áspero e inóspito. O resultado final demonstra o contrário e que, quando devidamente conjugado com outros materiais — no caso, a madeira, o veludo ou o couro —, o betão, marca registada de arquitetos internacionais como o espanhol Santiago Calatrava, pode funcionar também muito bem no design de interiores de obras com uma escala mais intimista.

[... foram embutidas no prolongamento das cabeceiras (©FG+SG-Fernando Guerra e Sérgio Guerra)]

E esse, juntamente com outras soluções encontradas, acaba por ser o grande mérito da Casa do Conto. Um edifício secular que, sem deixar de preservar e cultivar a memória, teve a ousadia de romper com o passado e de encontrar novos propósitos.

Mas, porque na história cabem sempre muitas estórias, e fazendo valer a velha máxima popular de que “quem conta um conto, aumenta um ponto”, este projeto levou o conceito de hotel além do habitual. Mais do que apenas uma residência, que faz as delícias de hóspedes ligados à arquitetura e ao design gráfico, a Casa do Conto previu desde logo tornar-se um pólo cultural no Porto, aberto ao lançamento de livros, à realização de pequenos concertos ou exposições, à apresentação de filmes e a tudo o mais que faça sentido e que contribua para enxergar a cidade de outro jeito.

Rua da Boavista, 703, 4050-110 Porto, tel. +351 22 206 0340, diárias entre €98 e €130

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